4 de janeiro de 2001

Para além de Nice


Resolvido que ficou o problema institucional na cimeira de Nice, a grande tarefa que a Europa tem perante si nos próximos tempos será a conclusão das negociações do alargamento.

Agora que as negociações entraram em velocidade de cruzeiro, parece ser tempo para começar a fazer alguma análise prospectiva. Embora este seja um terreno polémico - o das datas para as futuras adesões - é cada vez mais importante deixar algumas mensagens concretas aos novos parceiros que possam orientar os seus próprios esforços de aproximação à União. Porque sempre se manteve fora do “campeonato da simpatia” em termos de selecção de países ou de voluntarismos de calendário face aos países candidatos, o governo português tem hoje suficiente credibilidade para poder interpretar os elementos de informação disponíveis.

Assim, parece evidente que as negociações do alargamento vão ser aceleradas em 2001, com duas presidências que têm este assunto na sua agenda prioritária. Só nos podemos felicitar por isso. Mas também resulta claro que vão competir à Espanha, no primeiro semestre de 2002, os mais difíceis capítulos negociais e todos, aliás, devemos estar preparados para ajudar Madrid nesta que será uma dificílima tarefa.

Perante este cenário, e se tudo correr como previsto, nós poderíamos vir a ter a finalização de alguns dos processos de adesão ainda durante 2002. Se for possível concluir as ratificações parlamentares em cerca de 18 meses, a exemplo do que aconteceu no passado, em meados de 2004 poderíamos já ter os primeiros candidatos presentes nas eleições de Junho desse ano para o Parlamento Europeu, a participar na nova Conferência Intergovernamental que ficou prevista em Nice para esse ano (e não há nenhuma razão para que ela não comece no segundo semestre) e, finalmente, a indicar nomes para a Comissão Europeia que entrará em funções em 1 de Janeiro de 2005, que o Parlamento Europeu escrutinará nos meses anteriores. A nosso ver, seria um perfeito contra-senso projectar as adesões para alguns meses mais tarde, não se aproveitando este calendário de 2004.

Mas mais do que isso: note-se que entre a apresentação pela Comissão do projecto das últimas as “perspectivas financeiras” – no quadro da “Agenda 2000” – e a sua entrada em vigor em Janeiro de 2000 mediaram 30 meses. Ora se transportarmos este calendário para o futuro, até porque nada indica que a próxima negociação vá ser mais fácil e mais curta, poderemos prever que será precisamente no final do primeiro semestre de 2004 que será apresentado a proposta de programação orçamental plurianual a vigorar a partir de Janeiro de 2007. O que também significa que os países candidatos já poderiam fazer parte das negociações que definirão os orçamentos futuros.

Este é um calendário que se afigura realista, embora os leitores devam notar que contém dentro de si um elemento muito perigoso: a conjugação, a partir de 2004, de uma Conferência Intergovernamental com as discussões financeiras. A tentação de alguns de propor trocas de poder por cheques é algo a que escapámos no passado, mas que não podemos excluir que venha a ocorrer no futuro. Este é um alerta sério que importa fazer, até porque poderá acontecer que alguns possam não ter então uma sensibilidade muito forte no tocante a alguns aspectos estruturantes da União e sejam mais permeáveis a algumas dimensões mais imediatistas de natureza económico-financeira.

Valerá agora a pena fazer referência a três importantes momentos que poderão anteceder a alargamento.

O primeiro é o lançamento do próximo ciclo da Organização Mundial de Comércio. Falhado que foi o ensaio de Seattle – e, a título pessoal, o autor deste texto não verte lágrimas excessivas por isto – vamos avançar mais, possivelmente já este ano, no caminho para um novo ciclo. Embora importe esperar pelos indispensáveis sinais de Washington – e, pelo modo como o “fast track” do Congresso vier a ser obtido já teremos algumas indicações sobre a possível atitude da nova administração americana -, convirá evitar a tentação de deixar que alguns se proponham obter aberturas por parte dos países em vias de desenvolvimento à custa de uma aceleração dos calendários finais de desmantelamento pautal que ficou previsto no Uruguay Round.

A segunda questão não é independente da primeira e prende-se com a reforma da Política Agrícola Comum. Há semanas, todos pudemos ouvir as propostas alemãs para longos períodos transitórios na livre circulação dos cidadãos dos futuros membros no espaço comunitário, que foram aliás acolhidas com grande, mas expectável, simpatia nos corredores do Breydel. Se esperarem alguns meses, vão, com certeza, ouvir-se também novas propostas sobre idênticos períodos transitórios, desta vez sobre o regime das ajudas directas da Política Agrícola Comum, vindas agora de bandas mais a oeste – quando não, por iniciativa complacente da própria Comissão.

Isto significa que será na Política Agrícola Comum que vamos encontrar alguns dos dossiers mais complexos que estarão por aí nos anos futuros. Relembro que caduca em 2002 a chamada “cláusula de paz” do Uruguay Round e que é, por ora, ainda pouco claro como é que todos os diferentes grupos regionais de interesses se vão posicionar quanto às reduções das restituições à exportação, que devem ficar decididas dentro do novo ciclo. Mas há mais: por uma cumulação que pode ser vista num registo de alguma perversidade, foram adiadas para 2003, ou poderão projectar-se próximo desse ano, reformas de importantes Organizações Comuns de Mercados, que os maiores beneficiários da União devem querer concluir com a União ainda a Quinze.

A terceira e última questão, diz respeito ao sistema de recursos próprios da União. Embora não pareça, esta questão está ligada às anteriores. Porque a decisão recursos próprios incorpora hoje, embora com tendência decrescente, os chamados recursos próprios tradicionais (no fundo, os direitos aduaneiros e os direitos niveladores agrícolas, estes últimos decorrentes da Política Agrícola Comum. Com a perspectiva de liberalização progressiva das trocas internacionais – que o novo ciclo da Organização Mundial de Comércio vai seguramente potenciar – e com as concomitantes pressões para o desmantelamento de algumas dimensões mais proteccionistas da Política Agrícola Comum, estes dois recursos vão ter tendência a regredir, o que pode ter dois efeitos: ou aumentará a pressão sobre o recurso PNB (já que o recurso IVA tem também tendência a diminuir) ou voltará à baila a ideia de um 5º Recurso, nomeadamente baseado nas emissões de CO2. Da mesma maneira que Nice consagrou a vontade institucional dos Quinze antes do alargamento, eu pergunto-me se não poderá haver a tentação de reformular o sistema de recursos próprios antes da entrada dos candidatos, condicionando desta forma o formato das próximas perspectivas financeiras. 

Os três momentos que acabo de referir determinarão o ambiente que antecederá a próxima Conferência Intergovernamental. O Tratado de Nice deixou marcada para 2004 a realização dessa nova Conferência. Embora esteja previsto que as próximas presidências possam aprofundar a respectiva agenda, Nice elegeu já quatro temas fixos para esse exercício.

O primeiro diz respeito ao “estabelecimento e controlo de uma delimitação mais precisa das competências entre a União Europeia e os Estados membros, que reflicta o princípio da subsidiariedade”.

Quanto a este tema, importa notar dois aspectos de sentido oposto.

Um é positivo e diz respeito à importância que uma reflexão desta natureza, fixando os limites para a intervenção comunitária, pode ter para as opiniões públicas de países onde se vivem alguns tempos cépticos sobre a ideia europeia.

Outro é de sinal contrário. Ao pretender definir, em termos de Tratado, linhas delimitadoras sobre o que será ou não comunitarizável no futuro, estaremos a restringir o desenvolvimento potencial do processo integrador, o que pode afectar o aprofundamento de certas políticas.

O segundo tema da agenda que saiu de Nice prende-se com o “estatuto da Carta dos Direitos Fundamentais”.

Não se entende muito bem como, nesta matéria, vai ser possível avançar daqui a três anos em algo em que pouco se evoluiu em Nice. Muito provavelmente, em 2004 vamos acabar apenas por ter uma Carta Europeia inserida no Tratado com “opting outs”, como aconteceu com a Carta Social em Maastricht.

O terceiro tema é, na linguagem de Nice, “a simplificação dos Tratados, a fim de os tornar mais claros e compreensíveis, sem alterar o seu significado”.

Por detrás desta roupagem perfeitamente aceitável, há, contudo, aspectos em que importa atentar. Convém, desde logo, acabar com o mito de um Tratado mais “legível”. Os Tratados são textos jurídicos sobre uma realidade muito complexa e traduzem eles próprios delicados equilíbrios que exigem, por vezes, linguagens de compromisso jurídico-diplomático que dificultam a simplicidade dos textos. Isto pode não ser “politicamente correcto” pelos códigos da transparência, mas é a realidade.

O que verdadeiramente está por detrás deste exercício de simplificação é, contudo, uma pouco subtil tentativa de subtrair à ratificação dos parlamentos nacionais partes das futuras revisões do Tratado. A ideia mais corrente consiste em dividir o Tratado actual em três partes, uma das quais tida por constitucional, que seria a tal mais “legível” e a necessitar de aprovação unânime dos Estados e de ratificação dos parlamentos nacionais. A segunda parte, de natureza instrumental, continuaria a necessitar da unanimidade dos governos, mas já não necessitaria de ir aos parlamentos para ratificação. Finalmente, uma terceira parte abrangeria as políticas da União e poderia ser modificada apenas por maioria qualificada dos Governos.

Com mais ou menos “nuances”, é isto que muitos entendem por simplificação. A concretizar-se nos termos referidos, seria um passo algo desequilibrado, porque ao ”arrumar-se” as questões naquelas três dimensões, estamos, de facto, a alterá-las de qualidade, quanto mais não seja pela circunstância de as subordinarmos a uma tutela jurídica de diferente nível. Além disso, temos que perceber que questões, por exemplo, relacionadas com políticas comunitárias - que, nessa perspectiva, passariam a ser decididas por maioria qualificada - são hoje elementos compensatórios de aspectos de natureza mais estruturante, sujeitos a um procedimento mais pesado de revisão. Por essa razão, será necessário manter uma grande atenção quando este ponto vier a ser discutido em 2004.

Alguns se perguntarão: mas se estas questões só podem ser decididas numa primeira revisão dos Tratados que passará sempre pela unanimidade dos parlamentos nacionais, como é que se vai convencer estes órgãos a prescindirem, no fundo, de parte dos poderes finais de ratificação que hoje detêm ?

É aqui que pode entrar o quarto e último ponto da agenda pós-Nice: o “papel dos parlamentos nacionais na arquitectura europeia”.

É sabido que há uma crescente apetência por parte dos parlamentos nacionais para, também eles, virem a ser chamados a colmatar o tão propalado “défice democrático”, que até hoje tem servido apenas para reforçar o Parlamento Europeu. Nessa apetência conjugam-se hoje, um tanto equivocamente, alguns federalistas que entendem que uma câmara composta de parlamentares nacionais pode funcionar como um proto-senado, ao lado de alguns soberanistas que espreitam esta oportunidade para repatriar poderes hoje detidos pelo Parlamento Europeu. É no sucesso deste equívoco que alguns contam fazer assentar uma nova instituição europeia, seja ela, numa versão maximalista, uma câmara alta do Parlamento Europeu ou, numa versão minimalista, um órgão consultivo voltado para áreas de vocação intergovernamental, como a Política Externa e de Segurança Comum ou a Justiça e Assuntos Internos.

Neste contexto, há quem pense que os parlamentos nacionais podem ser conquistados para a ideia de perderem parte dos seus poderes de ratificação dos Tratados em troca de um papel no quadro interinstitucional da União.

Mas será que os quatro temas acima enunciados esgotam a agenda europeia do futuro a médio prazo? Com certeza que não.

Poderemos ainda ver renascer da questão da hierarquia das normas comunitárias, que nos vai conduzir para o terreno, muito escorregadio, da definição dos poderes inter-institucionais onde o futuro da relação Comissão-Conselho pode vir a surgir.

Teremos também todo um conjunto de decisões sobre a defesa e a segurança, que Nice praticamente “esqueceu”. Com efeito, a atingido que seja o “headline goal” em 2003, e sendo hoje frágil a cobertura jurídica desta matéria em termos de Tratado, dificilmente escaparemos a um sério debate que confrontará as diferentes culturas de segurança dentro da União.

A concretização da ambiciosa agenda de Tampere em matéria de Justiça e Assuntos Internos, que será mais relevante com o aproximar das novas adesões, chegará a momentos importantes que se ligam a metas temporais já definidas em Amesterdão.

Teremos ainda todas as consequências do calendário estabelecido na Cimeira de Lisboa sobre a competitividade europeia, que será marcado pela inescapável contraposição das leituras mais ou menos liberais do programa de medidas aí aprovado.

Veremos, provavelmente, nascer as primeiras cooperações reforçadas já no novo modelo institucional que saiu de Nice, as quais podem, aliás, vir a concretizar-se em algumas das áreas atrás referidas.

Finalmente, teremos de enfrentar, a prazo ainda mais curto, uma reflexão sobre os modelos de aproximação da União a outras áreas geográficas. Aqui se insere o futuro dos acordos de estabilização e associação com os países dos Balcãs, o relacionamento com a Ucrânia e com a Moldova e, não vale a pena ter ilusões, à continuação o problema turco. Como vêem, há muito que fazer.

A questão estará em saber se, para a gestão desta complexa agenda, teremos uma União que preserve os seus equilíbrios inter-institucionais ou enveredamos, sem remissão, por uma deriva intergovernamental onde os poderes da Comissão se diluam e onde, sob uma capa europeia, possamos ser confrontados com uma espécie de “condomínio” em que alguns, generosamente, se disponibilizam para tomar as decisões pelos outros. Nós, porém, não vamos por aí.

(Publicado no “Diário Económico”, em 18 e 19 de Janeiro de 2001. Baseado na intervenção proferida no Seminário Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, em 4 de Janeiro de 2001)



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