Quando hoje iniciarmos, em Sintra, a 17ª cimeira bilateral entre Portugal e Espanha, reeditamos um exercício que, para além de simbólico, tem uma face prática bem evidente. Há muito que este tipo de encontros saiu do domínio da retórica e passou a constituir um impulso político na avaliação regular do entendimentos que, em várias áreas sectoriais, aproximam os dois países.
Após o período de ruptura democrática comum de há um quarto de século, a entrada conjunta, em 1986, nas instituições europeias estabeleceu um percurso paralelo que acabou por ter um impacte profundo no próprio padrão das relações bilaterais.
Tratando-se de países que viveram sob a intensidade de um denso passado comum, é perfeitamente natural que a emergência de problemas de conjuntura reforce, quase sempre, a tendência para os tratar nesse mesmo cenário de fundo. A entrada comum na Europa constituiu, assim, um factor de desdramatização bilateral e um novo terreno para a regulação desses mesmos problemas. O maior diálogo empreendido e a crescente identificação de interesses comuns no plano europeu alargou o espaço de entendimento e criou um campo de relação política de um novo tipo.
A lógica que hoje predomina aponta a dimensão económica como o elemento central deste novo tempo. O êxito fulgurante da Espanha no mercado português consagra uma economia pujante perante um país deliberadamente aberto como é o Portugal de hoje. Uma abertura que, há que reconhecer, não é, por vezes, correspondida por alguma cultura administrativa cuja rigidez dificulta a exploração de todas as potencialidades do mercado peninsular, que só pode evoluir se se consagrar em ambas as direcções.
Todos temos que entender que, independentemente do peso relativo dos dois países, há equilíbrios que devem ser preservados, que a articulação de interesses económicos não pode nunca deixar de ter presentes, sem prejuízo do cumprimento das regras básicas do mercado interior europeu. O diálogo político neste domínio entre Lisboa e Madrid continua a ser, assim, da maior importância para a prudente gestão desses mesmos equilíbrios e os frutos estão à vista.
Para além dos aspectos económicos, que têm reflexos constantes na globalidade do relacionamento bilateral, torna-se importante sublinhar que os últimos anos têm vindo a consagrar um largo espaço para a criação de muitas outras complementaridades. O domínio das infraestruturas é porventura o mais evidente, mas, se bem observarmos, dificilmente poderemos encontrar alguma área sectorial em que não tenha havido, ou não estejam em curso de planeamento, medidas reguladoras de natureza comum.
Para além disso, o tecido normativo bilateral que entretanto foi criado - e é importante afastar a ideia de que o saldo destas cimeiras depende da uma mera contabilidade de novos acordos - possui hoje mecanismos regulares de diálogo para consultas mútuas e para conjugação de posições, que ultrapassam o mero tratamento caso-a-caso que era a regra do passado. Neste domínio, nunca será de mais lembrar o modo sereno e responsável como os dois países souberam evoluir no tratamento das questões dos rios peninsulares.
Alguns se questionam hoje sobre se esta evidente pacificação do relacionamento bilateral não acabou por ser afectada por uma aparente contraposição de posições dentro da União Europeia, no quadro da discussão que terminou em Nice. Neste domínio, há algumas constatações a fazer e alguns equívocos a ser esclarecidos.
Espanha e Portugal partilham hoje um vasto terreno de interesses comuns no âmbito europeu. A título de exemplo, e para além da atenção face à política de coesão económica e social e do empenho num novo tratamento europeu das questões da chamada ultraperiferia - que afecta os Açores, as Canárias e a Madeira -, existe uma objectiva coincidência de interesses em múltiplos campos das relações externas, de que a política mediterrânica e as relações com a América Latina são apenas algumas demonstrações óbvias.
Acresce que o padrão médio de interesses que hoje é representado no processo legislativo e orçamental em Bruxelas não reflecte, muitas vezes, os interesses específicos de ambos os países, o que nos obriga frequentemente a uma política bilateral de alianças em diversos domínios. Não obstante o diferenciado grau de desenvolvimento de ambos os países, é óbvio que o carácter dualista da sociedade e da economia espanhola proporciona ainda um largo terreno para que esta conjugação de interesses venha a sobreviver no futuro.
É neste contexto que devemos situar a questão institucional dentro da União Europeia, que esteve em discussão em Nice. Embora o problema tenha ficado definitivamente resolvido, cremos de interesse deixar aqui expressa a perspectiva portuguesa sobre ele, para que não restem quaisquer dúvidas, naquilo que à Espanha respeita.
A Espanha é um país de considerável dimensão no quadro europeu e teve sempre como legítimo objectivo consagrar esse seu estatuto no plano das instituições comunitárias. Para Portugal, uma Espanha forte e capaz de representar correctamente os seus interesses é um cenário desejável, tanto mais que, como atrás dissémos, muitos desses mesmos interesses se cruzam frequentemente com os nossos no funcionamento da União.
O “caso espanhol” tinha a ver, para nós, com a questão da possível compensação do poder da Espanha no quadro europeu, em troca da perca do seu segundo comissário, se poder vir a fazer em forte detrimento daquilo que eram os interesses de Estados de dimensão média, como era o caso de Portugal.
A isso se somava uma questão, que esteve presente nas longas discussões de Nice, e que tinha a ver com a necessidade da preservação de certos equilíbrios de natureza geopolítica no espaço europeu. Este era um tema que, como é sabido, ultrapassava, em muito, a dimensão do relacionamento peninsular, mas a que este, naturalmente, não podia nunca ficar alheio.
A resultante dos compromissos obtidos, que teve em atenção estes vários equilíbrios, acabou por ser o Tratado de Nice. A sua negociação passou por uma franca discussão sobre o que pontualmente dividia os vários parceiros, sem contudo esquecer a importância daquilo que, no essencial, os unia. Pela parte portuguesa, revemo-nos, sem quaisquer problemas ou reticências, no compromisso obtido, que saudamos como positivo.
Para nós, contudo, Nice foi já ontem. Importa agora olhar o futuro e tentar perceber como vamos extrair da soma do peso relativo de Espanha e de Portugal na União os benefícios para a preservação de interesses que nos são comuns. Só assim será possível continuar a alimentar esta saudável cultura de vizinhança que é o segredo da concórdia dos povos peninsulares.
(Tradução do artigo publicado no jornal "El País" em 29.1.2001)
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