9 de dezembro de 2008

Tanto mar?

Um fim de tarde de 1989, com o sol a pôr-se ao fundo da montanha, encontrou-me na praça central de Ouro Preto. Olhando em volta, entre a rua Direita e a do Ouvidor, apercebi-me, pela primeira vez, que uma parte de nós mesmos, dos portugueses, ficou para sempre por ali, por mais cantado que agora seja o sotaque, por muito distante que o nosso próprio mundo agora possa estar. Essa imagem ficou-me gravada na memória e atravessou comigo os anos. 

Passou-se mais de década e meia antes de eu regressar ao Brasil e antes de perceber – de novo no casario de Ouro Preto, mas também no silêncio nobre de Alcântara, no bulício africano do Pelourinho de Salvador ou nas esquinas apressadas do centro do Rio – que, verdadeiramente, só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil.

A comoção de entrar no forte Príncipe da Beira, de tropeçar nos nossos vestígios em Nova Mazagão, de lembrar os Açores em Ribeirão da Ilha, de ficar esmagado pela monumentalidade do Real Gabinete do Rio, de fixar a decadência serena da Beneficência Portuguesa em Belém, de sentir o cheiro forte das lojas de tudo, frente ao mercado de Manaus – tudo isso é preciso para que se prolongue em nós a interrogação, sem resposta, sobre o que é, afinal, ser português no mundo. Não se é português porque se nasceu em Portugal. É-se português pelo somatório das viagens que outros fizeram por nós, dos que foram e voltaram cheios de histórias mitificadas das Pasárgas que poderiam ter tido, mas também dos que não voltaram, dos que “queimaram as caravelas” e se entregaram aos novos mundos que fizeram seus.

O Brasil é o nosso álbum de memórias de um passado que é deles – não foram os nossos antepassados que colonizaram o Brasil, foram os antepassados dos brasileiros –, mas no qual não conseguimos deixar de nos sentir eternos figurantes no cenário de fundo. Às vezes, nessas encruzilhadas de paisagem que nos acordam um Portugal que, afinal, nunca conhecemos, foge-nos o pé patriótico para a tentação nostálgica da glorificação da gesta conquistadora, sem nos apercebermos que a face verdadeira da nossa glória, mais do que o saldo complexo da aventura colonial, está bem mais próxima de nós, está aqui nesta página, está nesta língua que nos une e cujas diferenças muito humanamente nos separam.

Ao longo de quase quatro anos no Brasil, coloquei sempre duas questões a mim mesmo: o que é hoje o Brasil para Portugal? E Portugal para o Brasil? Não sei se obtive ou obterei alguma vez a verdadeira resposta, mas ouso arriscar a minha.

No imaginário tradicional português, a independência do Brasil permanece como que se uma “jangada de pedra” se tivesse um dia afastado, num arroubo de um príncipe que transpirou a vontade de muitos, nela criando uma nação que éramos nós em sorridente, com mais música e alegria e com riqueza fácil à mão.

Os “brasis” foram sempre uma espécie de miragem para quem, em Portugal, sentia a aventura nas veias, para quantos, por ambição ou angústia, se decidiam a partir, muitas vezes sem o saber, para sempre. Para os portugueses, o Brasil era um destino muito diferente do de África, era mais acolhedor, menos perigoso e misterioso, algo mais próximo. Do outro lado do Atlântico, todos encontrariam um primo, uma afeição, uma hipótese para refazer a vida. Os que voltavam, traziam consigo como que um estranho vírus tropical de afectividade, um jeito informal e bizarro, uma forma de estar a que, por vezes, se associava uma ideia de inconstância ou de ligeireza. Mas o Brasil foi e permaneceu sempre, no sentimento profundo de muito portugueses, o último reduto da esperança, na busca por um melhor destino ou na luta pela liberdade. Ou um mero local de refúgio, a fronteira limite de uma mudança, como a casa de um familiar que nos acolhe numa crise de vida.

Pelo Brasil, durante largas décadas, muitos e muitos milhares de portugueses fizeram um trabalho árduo, geraram riquezas, às vezes para si próprios, quase sempre constituíram famílias que os “abrasileiraram”, foram leais a quem os acolheu bem, tornaram-se brasileiros de coração. Mas sempre cuidaram em guardar a memória dos vilarejos pobres de onde haviam partido e em alimentar, à sua maneira, o orgulho do país de que, sem o saberem, foram sempre os mais lídimos embaixadores. Por aqui ergueram instituições magníficas, deram lições de solidariedade e, na sua esmagadora maioria, tornaram a palavra seriedade como sinónimo de ser português no Brasil. E esse seu patriotismo sem baias levou a que, ironicamente, muitos acabassem por se identificar com o regime que, em Portugal, lhes não soube dar condições para poderem exercer esse direito natural que é cada um poder construir uma vida decente e próspera, sem ter, necessariamente, de sair do lugar onde nasceu.

Com o tempo, o Brasil mais verdadeiro, já não o Brasil virtual levado pelos “torna-viagem”, foi-se aproximando de Portugal e a sua imagem tornou-se-nos mais nítida: com a sua música eterna como fundo, servida por um “português com açúcar”, consumíamos as latas da goiabada e as resmas de “Cruzeiros” e “Manchetes” que os primos nos mandavam pelos natais. Nas suas páginas, como nos cantos do Juca Chaves e, mais tarde, do Chico Buarque, fomos aprendendo que, afinal, também por lá havia “amigos da onça”…

Amado, Veríssimo, Bandeira, Vinícius e tantos outros fizeram parte do mundo íntimo de muitos de nós. As novelas ensinaram-nos, com espanto, que o brasileiro também chorava – nem sempre sorria, nem tudo era carnaval e futebol. E percebemos melhor porquê, com a face patibular da ditadura militar a trazer-nos os exilados que encontrávamos por noites de Lisboa, onde vinham partilhar os cravos da festa do nosso contentamento. Com a liberdade já a passar por aqui, o Brasil foi-se definindo melhor aos nossos olhos – um país ambicioso, optimista, sempre “cordial” para quem lhe falava na língua quase comum. E, a cumular tudo isso, uma sociedade que procurou o caminho da reconciliação consigo própria, transformando-se numa democracia plena, que a atenuação das desigualdades reforça no dia-a-dia.

A prosperidade de uns tempos felizes trouxe os portugueses para as praias do Nordeste, onde aprenderam a apreciar a amenidade das gentes e se deliciaram com a descoberta de um “país sempre em férias”. Outros, mais engravatados nos negócios da modernidade, davam bom uso aqui aos capitais do novo ouro europeu, surpreendendo quem julgava que o português era prisioneiro eterno do bigode, do jeito fadista ou da postura seráfica, oscilando entre o bacalhau e a sardinha.

É que o imaginário do Brasil construiu-nos, pelos tempos, à semelhança de um imigrante-cliché, eternamente fixado na simplicidade do seu passado, rígido nos modos, linear na expressão, caricatura posta a jeito para a anedota fácil. Temos que saber entender que a “anedota do português”, quase sempre uma benigna erupção de alergia anti-colonial, é também, muitas vezes, um sintoma remanescente de alguma lusofobia, essa doença infantil da brasilidade que se espalhou por todo o século XIX e que parece ter deixado ainda uma marca residual em alguns sectores académicos e sociais contemporâneos. 

Com o seu mundo a mudar, o brasileiro mudou-se para o mundo e arribou a Portugal em doses maciças, desaguando num país do tamanho de Pernambuco e com a população do Paraná. A crise dos dentistas havia revelado que algum Brasil nos sentia ingratos. Sou dos que entendem que a onda recente de brasileiros, esse teste definitivo à nossa apregoada tolerância, pode dar sangue novo às nossas relações e contribuir para que, no Brasil, a imagem de Portugal se cole mais ao país que hoje realmente somos, um retrato eventualmente não tão inocente e bastante mais real, do que temos de bom e de mau. E com o turismo, que agora é também a partir de cá, a aproveitar a imensidão de voos da TAP, quero crer que os brasileiros vão, em poucos anos, entender o que nós já sabemos por aqui de há muito – que é possível estar no estrangeiro sem, verdadeiramente, deixar de nos sentirmos em casa.

Mas, também do nosso lado, Portugal vai ter de aprender alguma coisa mais. Vai ter de perceber, de uma vez por todas, que a sua relação com o Brasil tem uma assimetria inescapável e eterna. Para nós, o Brasil “é” português, é uma “criação” nossa e, por isso, crises à parte, ser pró-brasileiro em Portugal é a opção mais natural e óbvia, salvo na mediocridade xenófoba e minoritária de alguns “pixadores” anónimos dos muros da nossa própria imagem. 

Ora o Brasil é muito mais do que o que Portugal por aqui deixou, é uma sociedade onde africanos, alemães, japoneses, árabes, italianos e tantos outros se projectaram e ajudaram a construir um fantástico país, no qual livremente cultivam, sem qualquer pressão uniformizadora, as suas memórias e tradições. Por essa razão, porque não têm galos de Barcelos ou caravelas quinhentistas na sala, nada os obriga a reverenciar uma “terrinha” de onde não vieram os seus antepassados, de onde talvez só apreciem o bolinho de bacalhau ou o pastel de Belém, lugar de Lisboa que aliás não sabem muito bem onde fica – no que estão no seu pleníssimo direito. Por isso, quando a grande maioria de nós, portugueses, se junta a amigos brasileiros para apoiar, sem hesitação, o “escrete canarinho”, durante as “copas” por esse mundo fora, não devemos esperar uma retribuição idêntica. Temos de acordar para a realidade de que, em Blumenau, é a selecção alemã a escolhida ou que, na Móoca paulistana, a squadra azzura terá sempre preferência, pelo que a sorte do “time” português lhes será provavelmente indiferente, em especial depois da saída de Felipão.

Quem, em Portugal, não entender isto, não vai conseguir entender nunca o Brasil. O que não significa que nos não reste ainda muito em comum, a começar pela tolerância que permite esta sã convivência de culturas e pessoas – essa sim, uma das duas valiosas heranças que por aqui deixámos. A outra é a língua, soando diferente aos ouvidos, mas que liga ambos os países a outros continentes e que se procura agora evitar que se afaste na sua forma escrita, para melhor nos servir na nossa afirmação individual e colectiva pelo mundo.

Termino com duas constatações que são hoje as mais óbvias das ideias que formei no Brasil.

A primeira é que ter sido diplomata português no Brasil foi um privilégio que não trocaria por nenhuma outra experiência.

A segunda é que Chico Burque não tem razão: já não há 'tanto mar' a separar o Brasil de Portugal.

3 comentários:

  1. Depois de quinhentos anos de ranço entre colonizador e colonizado, abre-se espaço para o amadurecimento e compreensão. As pixações e anedotas sempre vão existir por falta de algo melhor para se dizer ou fazer na vida.
    Gostei do texto. Bem dito.
    Dora Lúcia

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  2. Engraçado, ao ler este texto, um certo gosto a maresia me entrou na boca... e entrou via Açores, donde parti há quarenta anos e p'ra onde estou voltando.

    Os nossos parentes da América foram os filhos dos nossos parentes no Brasil. Tantas cantigas brasileiras me embalavam em criança... Ai, aqueles "chorinhos"...

    Agora, os tempos já não são, nem vão de barco!!! A lentidão desse Tempo sublimou-se em voragem do Tempo hodierno. Já não se diz: "Adeus, até p'ró ano se Deus quiser"; agora diz-se: "até já"!

    Nós, portugueses e brasileiros não pretendemos ser iguais. Pretendemos apenas ser parentes. Já lá estivemos e agora vêm eles, neste vai-vem cíclico dum moto-contínuo que faz girar este nosso pequenino mundo. Não tenhamos vaidades balofas. Este nosso mundo é mesmo pequenino, mas cada Homem é um mundo imenso. Saibamos respeitá-lo e perceber a verdadeira dimensão das coisas: nem de menos, nem demais, q.b.

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  3. Gostei muito do texto. Além da tolerância, da nao-segregação (que espero que continue como um dos principais e mais admir'veis traços da nossa cultura)e do idioma, outra heranca valiosa é a integridade territorial. O Brasil é imenso, tao diverso, tao variado e, no entanto, somos a mesma naçao, o mesmo povo com o mesmo idioma. Isso nao tem preço! (E poderia ser segmentado como a parte espanhola).

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