Concedo que pode ser um pouco bizarra a circunstância do apresentador de um livro não estar presente na sessão do seu lançamento.
Mas hoje é um dia já de si bem bizarro: por esta hora, estão a acontecer coisas que muitos de nós nunca imaginámos que pudessem vir a acontecer. A falta – embora devidamente justificada – do apresentador de um livro será, pela certa, a última razão pela qual, de futuro, se falará deste dia 20 de Janeiro de 2017.
Frederico Duarte Carvalho, um jornalista que eu não conhecia pessoalmente, formulou-me, há várias semanas, o convite para poder apresentar um livro que escrevera.
Ao referir que o tema era Bilderberg, ele recordar-se-á que fiz, de imediato, uma declaração de interesses: sou muito pouco dado a teorias conspirativas, tenho uma leitura muito própria e arraigada sobre a real importância desse tipo de cenáculos, pelo que admitia que a minha apresentação pudesse não servir os propósitos do seu convite.
Mas o autor, simpaticamente, insistou e sublinhou que ele tinha especialmente a ver com a circunstância de ter descortinado, nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, algumas peças documentais sobre o modo como a ditadura portuguesa se relacionara com Bilderberg. E aí, confesso, a minha curiosidade prevaleceu.
E li o livro.
Quem conhece a escrita de Frederico Duarte Carvalho - e eu conhecia-o já dos jornais e de um seu livro anterior –, a sua agilidade estilística, o seu jeito de reporter, sabe que está perante alguém com uma linguagem viva, apelativa, com forte riqueza de imagens.
Temos perante nós um livro em português de lei, com ritmo e boa organização das ideias que promove. O autor vai desfiando a sua tese, procurando, a cada tempo, encontrar uma lógica que dê coerência àquilo que pretende demonstrar. Por isso, porque este é um livro bem escrito – e farto-me de ler livros mal escritos - fiz a leitura deste “Governo Bilderberg” quase de uma vez só, com o prazer de leitor militante que sou. Mas não saí dele com o meu ceticismo infirmado.
Para Frederico Duarte Carvalho, Bilderberg representa uma espécie de clube de interesses, à escala global, que procura garantir, por discreta cooptação, que aqueles que revelaram a adesão a um conjunto básico de princípios, podem ser ajudados a assumir funções e, eventualmente, a atuarem em consonância com os objetivos que o grupo se propõe defender. A triagem desses eleitos é feita, em cada país, por alguém em quem o grupo delega a responsabilidade da seleção, na certeza que tem de que os seus critérios essenciais são sempre preservados.
Neste cenário, desenhado pelo autor, Francisco Pinto Balsemão representa o papel de « pivot » português de Bilderberg e, nessa função, ao longo dos anos, foi convidando a estarem presentes nas reuniões anuais figuras que tinham já algum passado que parecia indiciar um futuro promissor.
Como disse, quase cinco décadas a observar o mundo e as suas instituições levaram-me a alimentar algum ceticismo sobre a capacidade de certos interesses conseguirem mobilizar, como se de uma religião se tratasse, prosélitos que, no nosso caso, vão da ala esquerda dos socialistas a conservadores radicais. Bilderberg, como a Trilateral e outras estruturas desta natureza (porque há algumas outras), o que é que são, na minha visão pessoal?
São foruns onde vigora uma espécie de «template» comum : defesa acérrima da economia de mercado, recusa de receitas económicas estatizantes, sob o cultivo de um pensamento semore muito liberal - na leitura europeia de liberal, não na americana, claro. Durante a Guerra Fria, a profunda rejeição do comunismo e de tudo quanto o pudesse favorecer levou, muitas vezes, à transigência cínica com alguns autoritarismos conservadores. Bilderberg para mim foi e é isso – e não muito mais.
Nas suas reuniões, são ouvidas opiniões informadas, gente intelectualmente quase sempre muito bem preparada, às vezes algumas vozes fora do «mainstream» do clube. Isso permite uma oportunidade única de ter uma imersão total, em escassas horas, num manancial de ideias que, nem por serem direcionadas, deixam de ter grande interesse.
E há um outro aspeto em que Bilderberg tem importância: no «networking», nas redes de contactos e conhecimentos que se estabelecem e promovem nesses encontros. Um bom contacto leva a uma outra conversa futura, às vezes a um negócio, seguramente a uma atualização da agenda telefónica ou de emails.
Aquilo em que divirjo de Frederico Duarte de Carvalho é na sua leitura de que Bilderberg promove pessoas para chegarem a certos postos. Eu acho, bem ao contrário, que essas pessoas são escolhidas para irem a Bilderberg porque, na perspetiva de quem as selecionou, eram gente com futuro.
No caso português acho que Pinto Balsemão fez o óbvio : escolheu aqueles que via como «high flyers», enganou-se algumas vezes mas, no essencial, acertou. Porquê ? Porque o nosso «baralho» é pequeno e, por cá, quem tem um olho é rei...
E vamos ao Estado Novo. É deliciosa, em especial para quem é tributário da cultura funcional dos Negócios Estrangeiros, o modo como a ditadura, com pinças, tratou o convite que lhe foi endereçado para ir às reuniões de Bilderberg : havia por ali muita desconfiança, alguma falta de mundo e um atavismo quase patético.
Salazar percebeu que aquela gente era conservadora e anti-comunista e que esse era um terreno a explorar, no espaço cada vez mais limitado de que a sua política colonial ia tendo no plano internacional.
Mas a desconfiança estava, claramente, na influência americana que ele pressentia por detrás de Bilderberg. E rapidamente ficou claro para a ditadura portuguesa que uma postura anti-colonial era já a palavra de ordem dominante nos meios avançados do capitalismo internacional que Bilderberg representava. A utilidade do clube para o regime declinante revelou-se assim escassa. Mas, repito, acho deliciosa a descrição que Frederico Duarte de Carvalho faz dessa coreografia diplomática, às vezes muito primária, que rodeou as primeiras participações portuguesas em Bilderberg.
Termino com um voto de sucesso para este livro. Chamei a este texto «Não é por acaso», que é a expressão com que vulgarmente se iniciam as análises conspirativas. Mas é apenas por acaso, pela coincidência infeliz com uma cerimónia a 400 km de distância, a que não pude furtar-me, que não posso ter o gosto de ser eu a ler este texto. Mas isso permite-me, pelo menos, agradecer a quem o fez e, claro, ao autor que me fez este amável convite.
(Apresentação o livro "O Governo Bilderberg", de Frederico Duarte de Carvalho, em 20.1.17)
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