9 de janeiro de 2017

Soares europeu

Quando Jaime Gama me deu a novidade, num dia do primeiro semestre de 1999, caí das nuvens : Mário Soares iria ser o cabeça de lista do Partido Socialista às eleições europeias. Estava já tudo assente entre ele e António Guterres, que passaria a contar com um trunfo importante para o sufrágio. Três anos depois do fim da sua década de Belém, Soares voluntariava-se para uma batalha pela Europa.

Gama pedia-me que falasse com Soares, tentando-o preparar para os debates que iriam seguir-se, procurando garantir que ele não se afastaria da « linha » que o governo Guterres projetava na sua política europeia. Convidei Mário Soares para um almoço discreto num restaurante na Madragoa. Expliquei-lhe, com jeito, qual era a minha tarefa. Foi simpático e amigo, como sempre, mas logo concluí que me tinha sido atribuída uma missão impossível : Soares não se deixaria enquadrar. Propus-me preparar-lhe eu próprio um conjunto de fichas temáticas, simplificadas, que refletissem a nossa orientação. Aceitou, de muito bom grado, a ideia. Quando, uma semana depois, lhe enviei o que me tinha dado grande trabalho a fazer, telefonou-me de volta, gratíssimo, dizendo que aquilo passaria a ser a sua « Bíblia ». Dois dias depois, li na imprensa extratos de uma intervenção sua em Paris : algumas ideias contrariavam abertamente o que vinha na minha « Bíblia »...

Mário Soares foi sempre um político instintivo e intuitivo, e, muitas vezes, os factos deram-lhe razão. Isso induzia-lhe uma imensa confiança que o levava a pensar, quase sempre, pela sua própria cabeça. Na Europa, as coisas iriam passar-se da mesma forma. Soares tinha criado uma certa ideia da Europa, das suas linhas tendenciais de evolução desejável, do desiderato mobilizador. Nada o irritava mais do que a tibieza dos burocratas, o peso dos aparelhos, a falta de ousadia, de ambição, de sentido de destino. Em muitas conversas que com ele tive, senti-o descontente com algumas cautelas soberanistas que eu cuidava em ter. Várias vezes me disse que, nas questões europeias se sentia muito mais próximo de Guterres do que de Jaime Gama ou de mim. Soares olhava « grande » para a Europa. Quando teria nascido o Mário Soares europeu ?


A Europa « do capital »

A criação das Comunidades Europeias, em 1957, apanha Mário Soares num período já posterior à sua ligação ao Partido Comunista. O profundo desencanto em relação à « traição » das democracias europeias, que tinham deixado, prolongar as ditaduras ibéricas, numa Europa ocidental livre, marcava ainda muito do sentimento dos oposicionistas portugueses, que achavam que essa cumplicidade se mantinha por parte de alguns e era aproveitada habilmente por Salazar.

Por outro lado,  a esquerda portuguesa estava muito longe de alimentar qualquer ideia sobre uma futura unidade europeia, vista apenas como uma tentativa de atenuar a fratura franco-alemã, impulsionada pelos Estados Unidos, numa jogada que não era independente da Guerra Fria em que o mundo estava mergulhado. Nos meios políticos em que se movia, não havia o menor discurso sobre a criação institucional da Europa, tema que, à época devia ser lido em Portugal como relevante apenas para alguns países que haviam estado envolvidos na guerra. O Tratado de Roma era tido pela nossa esquerda como um mero quadro de cooperação intergovernamental, entre economias capitalistas, um tempo em que o discurso continuava a assentar numa denúncia da Europa « do capital ». E assim seria até ao 25 de abril.

A « Europa connosco »

A Revolução de 1974 vai alterar tudo. Soares deixa de ser um dos líderes de uma oposição perseguida pela Ditadura, com uma narrativa feroz sobre os malefícios da sociedade capitalista europeia, e passa a ser um político com funções de Estado, cioso em tentar ganhar para Portugal um lugar diálogo com todos os parceiros. O sentido socializante da Revolução portuguesa é evidente, mas cedo Soares começa a entender que o mundo europeu e norte-americano em que se move é o das democracias liberais, com maior ou menor « toque » de esquerda. As experiências do Verão Quente tê-lo-ão, com certeza, ajudado a descobrir uma nova linguagem, comum a muitos dos seus amigos da Internacional Socialista, que diariamente frequentava.

São os anos do governo que aproximam inexoravelmente Mário Soares da Europa. Mas, sejamos lúcidos ! O que à época se pretendia era ter a « Europa Connosco » para garantir as ajudas para o financiamento da economia portuguesa, que passava por momentos dramáticos. A mobilização de Soares junto dos social-democratas (um termo então quase tabu para a nossa esquerda) europeus tinha esse objetivo essencial. É nesse movimento e nessa interlocução em busca de ajudas que, a meu ver, Mário Soares “descobre” a Europa. Se lermos os textos da época, fica claro que a aproximação às instituições comunitárias surge como uma decorrência natural dessa ligação ”interesseira”, muito embora apoiada na evolução natural de um pensamento socialista democrático, aculturado à evidência de uma Europa que vivia em plena economia de mercado, a qual, aliás, dera evidentes frutos nos “trinta gloriosos” anos de prosperidade que se viviam na Europa.

Mário Soares, a par de Medeiros Ferreira, é o promotor histórico do pedido de adesão às instituições europeias. Creio que ambos, com Portugal recentemente saído de tempos de grande turbulência política, se terão dado conta de que ancorar o nosso país aos parceiros europeus mais desenvolvidos podia contribuir para estabilizar o nosso processo democrático, ao mesmo tempo que nos fornecia meios materiais para potenciar o desenvolvimento económico que a Revolução não tinha facilitado. Quando se diz que esse desígnio foi assumido como alternativa ao processo colonial que terminara, confesso que alimento algumas dúvidas: as coisas acabaram por seguir por aí, mas não acredito que o pedido de adesão seja o resultado de uma maturação estratégica dessa envergadura. A História escreve-se sempre depois.

É graças a Mário Soares e à sua magnífica e crescente rede de contactos que o processo de adesão evoluiu no plano externo. Dentro de Portugal, Soares teve a sabedoria política de o colocar como um objetivo nacional, percebendo que, ao assim proceder, tinha nas mãos um instrumento mobilizador, com um espetro alargado de suporte, de que o PCP “fazia o favor” de se excluir. A Europa passou a ser sinónimo de liberdade, no jargão do socialismo democrático. E os socialistas, não obstante alguma coreografia daquilo que viria a ser o PSD, acabaram por ficar colados, por bastante tempo, à imagem de “o partido da Europa”. Nem os longos anos de Cavaco Silva em S. Bento foram suficientes para desfazer por completo esta perceção.

O federalismo

O entusiasmo europeísta levou muita gente, em Portugal, a desenhar como desejável o caminho para uma Europa federal. Um dia se trabalhará melhor a evolução do debate em torno da ideia federal europeia no nosso país, tida como a resposta definitiva que melhor poderia evitar, por um salto centrípeto, os riscos de periferização. A conceção é simples: sendo Portugal um país sempre frágil à mesa do Conselho Europeu, uma verdadeira gestão coletiva de soberanias libertar-nos-ia de riscos de marginalidade.

Mário Soares adotou instintivamente esta filosofia. Tendo chegado à Europa por razões de interesse, soube dar um salto coerente em frente, no plano dos princípios. Impulsionou entre nós o Movimento Europeu e colocou-se no centro dos promotores de uma Europa federal, de uma Constituição Europeia, com todas as suas decorrências. A partir de certa altura, com especial incidência no período posterior à sua saída da Presidência, Soares surge como o maior mentor do integracionismo radical europeu entre nós.

Quando, em 2002, pedi a Soares um prefácio para o meu livro “Diplomacia Europeia – as instituições, o alargamento e o futuro da União”, a que se voluntariou de imediato, notei que se viu obrigado a distanciar-se ligeiramente nesse texto de algumas das minhas propostas e posições. Mário Soares nunca me achou suficientemente federalista, pelo menos pelos padrões de exigência que ele entendia dever seguir. E tinha razão para pensar assim.

Um cidadão da Europa

Poucas pessoas com estatura política em Portugal acumularam, como Mário Soares, um saldo tão grande de experiêncIa europeia. Educado num Portugal fechado, Soares teve a Europa como lugar de exílio e, antes disso, como referente cultural, de valores e de ideais. A vida política levou-o a privar de perto com líderes de um continente em anos de profunda transformação. Com um Portugal convulso, arruinado e com um trauma colonial a resolver, Soares percebeu que era a Europa que nos podia “salvar” e teve a perceção de que o choque de modernidade de que Portugal necessitava também podia vir daí. Foi ousado e ganhou. Foi convicto naquilo em que acreditou, porque tinha uma forte cultura humanista, aliada a um sentido estratégico excecional, o que lhe permitiu fixar com exatidão o novo destino do país.

Quando eu vivia em Paris, e das vezes que por lá passava, Mário Soares dava-me o privilégio de longas conversas, mais tarde repetidas na Fundação. Notava-o desencantado com o rumo europeu, com os egoismos crescentes, com a mediocridade de muitas lideranças. Sentia-o progressivamente triste com o rumo do processo integrador, desiludido com a atitude dos novos Estados membros, ele que tanto fora um arauto empenhado do alargamento. Contudo, nunca o vi desanimar, pela convicção que tinha de que a Europa se recomporia, conseguiria ultrapassar a obsessão financeira em que tinha mergulhado os dias, o cinismo contabilista para que se deixara arrastar. Soares era por uma Europa política, de valores, de ideais, de projeto, um bom cimento para a paz. Era essa Europa, que justificara o Tratado de Roma, que Soares tinha esperança em ver renascer, não por uma mera opção ideológica, mas pela racionalidade que lhe parecia óbvia para um futuro de estabilidade e bem-estar para o continente.

Com a morte de Mário Soares morre um certo Portugal europeu, que tentou fazer da ideia da integração do continente a alavanca para um Portugal, não apenas moderno e mais desenvolvido, mas eticamente à altura do seu passado, da sua imagem como Estado “de bem”, uma sociedade aberta e solidária, na Europa e no mundo. Mário Soares não vai poder testemunhar se a Europa que sonhou não está a morrer, afinal, também consigo.

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