Lamento não poder corresponder à promessa que fiz ao Miguel Almeida Fernandes de hoje estar aqui convosco, a trocar algumas ideias sobre a Europa. Pode ter sido algum vento europeu que me trouxe a gripe que agora provoca a minha ausência. Ou são talvez só os maus ventos que sopram de Almaraz...
Em 2007, há precisamente dez anos, fui convidado a ir do Brasil a Harvard para falar sobre um tema que, na altura, era candente – e que hoje está posto nas calendas da plausibilidade: a entrada da Turquia para a União Europeia. Numa conversa coletiva durante o almoço que antecedeu a conferência, um professor canadiano perguntou-me, com uma desarmante candura, se Portugal se tinha já preparado para a iminência de ter de sair do euro.
Segundo ele, o facto de os mais poderosos membros da moeda única estarem, já então, a incumprir com os princípios a que se tinham comprometido deixava bem claro que, para os mais fracos (como manifestamente era o caso de Portugal), a situação seria insustentável, ao menor abalo a que o sistema viesse a ser sujeito. A minha resposta foi ingénua na sua sinceridade: disse-lhe que, na nossa avaliação, os custos que significaria um eventual abandono da moeda única seriam sempre superiores a tudo quanto tivessemos que fazer para nos manter dentro do clube. Não sei se convenci quem então me ouviu, muito menos o meu interlocutor. Mas, é verdade, essa era – e ainda hoje continua a ser, a manterem-se certos pressupostos – a minha leitura.
Estávamos em 2007. A crise financeira internacional ainda se não vislumbrava no horizonte, se bem que muitos – aqueles que costumam ter a pouco credível razão antes do tempo – já apontassem então para as bolhas imobiliárias e para as correlativas disfunções financeiras que minavam o sistema.
Portugal vivia, então, nessa linha estatística plana de um mediocre crescimento, que apontava para a persistência de uma endémica falta de competitividade e da falta de soluções para a colmatar. A dívida, então mais a privada do que a pública, ia aumentando a olhos vistos, mas a ideia de que o para-raios do euro nos protegeria parecia preponderar em quem ia tendo responsabilidades políticas.
Há algo que muitos tendem a esquecer. Estava criada, à época, a sensação de que a Europa, em última rácio, viria sempre a encontrar uma solução para os seus problemas menores. Desde logo, porque os consideraria seus, isto é, europeus, sujeitos a uma resposta coletiva. Por outro lado, porque uma economia como a portuguesa seria sempre um problema menor, quiçá até barato, que, em caso de desregulação seria absorvido, com facilidade, pela zona euro.
Medimos mal o peso da realidade, avaliámos erroneamente o sentido da solidariedade europeia e, depois, foi o que se viu. A Europa económico-financeira, sujeita à pressão da crise, claudicou politicamente. E nunca mais se reencontrou.
Essa parte importante da Europa, para quem o euro fora uma solução em tempos do otimismo, deixou de se considerar responsável, de forma solidária, quando as coisas passaram passaram a correr menos bem. O sucesso era europeu, os fracassos eram individuais – e as responsabilidades também.
Se refletirmos um instante, verificaremos que, mais do que as instituições europeias, o que se fragilizou foi a vontade política para a tomada de decisões com real impacto comum. De facto, enquanto uma instituição como o Banco Central Europeu se mostrou a partir daí resiliente, e capaz de se afirmar com relativa eficácia, as lideranças europeias, ao cederem à tentação de autonomizaram as dívidas soberanas, depois do acordo Merkel-Sarkozy em Deauville, confirmaram que, a partir daí, seria o “sauve qui peut” – o salve-se quem puder. Alguns economistas na sala estarão, por esta altura, a pensar, intimamente, que, se acaso tivesse sido outra a decisão política então tomada, o BCE acabaria por ter uma tarefa impossível. E, provavelmente, têm alguma razão. Isto só prova que, nos dias europeus que atravessamos, a moeda, mesmo a única, tem sempre duas faces…
Mas é sobre a crise política europeia que lhes quero falar. Sei que pode ser impopular dizer isto num país como o nosso, mas há uma realidade, bem comezinha, com que todos temos hoje que viver. Cada país europeu tem uma agenda de interesses e de preocupações diferente das dos restantes, às vezes mesmo contraditória entre si. A ideia comum europeia, esse cimento ideológico de liberdade, progresso e potencial desenvolvimento coletivo funcionou, por muito tempo, como saudável fator agregador.
E vamos ser claros: funcionou enquanto a Alemanha, por razões históricas que me abstenho de trazer à colação, se dispôs a pagar o essencial do cheque, que dava aos deserdados da sorte no continente a ideia de que um dia iriam poder vir a colar-se ao “pelotão da frente” dos ganhadores do Mercado Único europeu. Essa Europa acabou. Esse sonho também.
A Europa dual está aí para ficar e é à volta dessa sua dualidade, da forma de a gerir, com o mínimo possível de tensões, que os entendimentos futuros terão de ser feitos. Os alargamentos – e não só os últimos – introduziram uma mudança qualitativa profunda nos valores comuns que todos dávamos por adquiridos, naquele “politicamente correto” que nos habituáramos a ver como o “template” do discurso comunitário. As várias Europas que aí andam mudaram de prioridades, passaram a colocar os interesses nacionais muito acima de qualquer registo solidário de sentido europeu. No plano imediato, passaram a vir ao de cima preconceitos que todos sabíamos estarem subjacentes no pensamento prevalecente em muitas opiniões públicas: países do Sul, laxistas, gastadores, etc. E as consequências fizeram-se logo sentir, por exemplo, nas dificuldades sentidas para montar o consórcio de ajuda na concessão do pedido de resgate de Portugal. Basta lembrar a atitude do partido dos “Novos Finlandeses” para regressarmos com facilidade a esse tempo.
(E, já agora, conviria lembrar que, nos tempos que correm, seria ainda mais difícil reconstituir uma ajuda dessa dimensão, no caso de ser necessário um segundo resgate.)
Mas voltemos ao que interessa, que é o plano politico. É fácil condenar o que pode ser visto como egoísmo por parte de alguns Estados membros, em especial daqueles que nunca tinham estado na anterior Europa comunitária.
Mas, repito, temos de ser realistas. É um facto que a generalidade dos dirigentes desses mesmos países nunca enveredaram por uma pedagogia interna das vantagens gerais retiradas da integração europeia. É óbvio que a maioria deles seguiu o caminho fácil de considerar Bruxelas e o que ela representa como o “bode espiatório” de tudo quanto possa correr mal nos seus Estados. Mas a verdade é que estamos a falar de democracias e as democracias respondem perante os seus eleitores e repercutem os seus sentimentos. Estamos a falar de Estados em que as lideranças, muitas vezes frágeis e em forma de coligação, representam opinões públicas que não estão “nem aí” para essa coisa de auxiliar os outros, muitas vezes sob constantes campanhas mediáticas de denegrimento sistemático desses mesmos outros.
Acresce o evidente: o receituário para o combate aos défices excessivos passou a ser praticamente único na maioria dos governos da zona euro, os quais, seguramente, olham com ironia o facto das medidas antiausteritárias serem contestadas precisamente, e quase em exclusivo, por quem é forçado a implementá-las. Daí que o espaço para a consensualização de mecanismos de diferente natureza, como a mutualização da dívida, seja hoje praticamente nulo, com uma maioria a olhar como uma espécie de devida punição os rigores inflingidos pelas medidas de contenção dos défices. Devo dizer que, no auge da crise grega, cheguei a pressentir algum sadismo em certas declarações de dirigentes da Europa rica e, em especial, em alguma imprensa menos preocupada com a brutalidade com que diz as coisas.
Mas esta é, meus amigos, a Europa que temos. Respeito muito as reuniões, como a que há dois dias teve lugar em Lisboa, em que dirigentes da Europa do Sul procuram conjugar posições para tentar mudar o sentido do discurso europeu. Tudo deve ser tentado, mas a História prova que raramente a soma das fraquezas conduziu a uma grande força. Porque a chave do problema, que o mesmo é dizer, a chave do cofre, está a Norte e, por aí, as coisas não parecem tender a mudar.
Essa Europa rica não parece disposta, apesar das lições negativas retiradas das políticas de austeridade, a enveredar por fórmulas de mutualização de risco. O que é menos compreensível, porque isso já toca um elemento relativamente mais gerível, é que não se gerem consensos mínimos no sentido de políticas de discriminação positiva, seja nos acessos aos programas de financiamento público, seja no aliviar dos juros da dívida – em especial dos países que se constate terem feito um percurso de redução nominal do seu défice. Mas a grande barreira, que parece inultrapassável, é a questão da dívida, sem cuja reestruturação – ou renegociação, como o eufemismo recomenda – nada se conseguirá, com qualquer efeito significativo.
Estamos então num impasse? Estamos numa navegação à vista. E os ventos não parecem favoráveis. Senão vejamos.
Está ainda por medir o efeito da onda Trump na economia americana e, por reflexo, na economia europeia. E se pensarmos que agora podemos esperar sentados pelos efeitos positivos que a Parceria Transatlântica a todos nos traria, não é líquido que certo tipo de estímulos à economia, que a nova administração em Washington possa vir a desenvolver, não acabe por ter impactos entre nós, o menor do quais não seria a subida das taxas de juros – o que, para um país como Portugal, acarretaria uma asfixia, a prazo.
Numa segunda linha de preocupações, situa-se o Brexit. Embora fique a sensação, entre fantarronices ouvidas de ambos os lados da Mancha, de que muito pouca gente tem ainda real consciência do que poderá vir ocorrer, a verdade é que, em qualquer circunstância, o impacto na confiança em que assenta o principal tecido económico que é para nós relevante vai ser muito forte. Devo dizer, mesmo não sendo economista, que me preocupa mais o período negocial, com todas as suas indecisões e “recados” para os mercados, do que a situação pós-divórcio. Mas, quanto a este, também convém sermos realistas: uma economia europeia amputada de um dos seus principais elementos, um orçamento que já não disporá de um dos seus principais contribuintes líquidos, é um cenário muito pouco prometedor. E, volto a repetir, isto é particularmente relevante para Portugal, que será sempre um elo fraco da cadeia europeia.
A este cenário de indecisões soma-se a situação francesa. Alguém dizia, há dias, que uma vitória presidencial de Marine Le Pen significaria o fim da União Europeia, pelo menos como hoje a conhecemos. Concordo com essa perspetiva. Goste-se ou não, o eixo politico franco-alemão é um elemento essencial no equilíbrio do projeto integrador. Ter no Eliseu uma interlocutora anti-euro, que em nenhum cenário minimamente realista, conhecendo o sistema politico francês, lhe poderia assegurar uma maioria parlamentar, transformaria a França num catavento à deriva, numa coabitação desastrosa. Dificilmente a Europa sobreveria a este panorama e, com toda a certeza, parte dela procuraria gizar um outro modelo de cooperação integrada.
Mas há alguma hipótese de vitória Le Pen? Até ontem, parecia que não, tudo indicava que o candidato da direita normal tinha praticamente assegurada a vitória à segunda volta, em especial depois da esquerda aparentar escolher o mais inelegível dos seus possíveis candidatos. Mas algumas trapalhadas, nas últimas horas, em torno da família Fillon podem vir a mudar este cenário.
Restam a Itália, a Holanda e, finalmente, e como sempre, a Alemanha. Falando apenas desta última, de quem o essencial depende, eu diria que estamos condenados a desejar que tudo continue na mesma no poder em Berlim, que a aliança da Grande Coligação se renove, muito embora haja sinais de que nunca será tão forte como tem sido até agora. A estabilidade no país central da União Europeia é um elemento chave para o futuro coletivo e, nesse futuro, para aquela parte dele que também nos toca. O ponto decisivo, nesta corda bamba em que vivemos, é garantir que a verdadeira aliança que à Europa importa, a aliança entre Berlim e Frankfurt, se não desequilibra em desfavor das políticas que favorecem o statu quo que nos tem vindo a proteger.
Será essa a solução para os nossos problemas? Para um país com uma dívida monstruosa, cujo serviço limita fortemente o exercício de políticas públicas amigas do crescimento, com uma economia exportadora que poderá estar a atingir os limites plausíveis de expansão, com uma economia de serviços baseada num surto turístico que não está a salvo de um qualquer sobressalto securitário, num tempo de crise geral de confiança económica que retrai naturalmente o investimento, o panorama não é brilhante.
Mas como nós cá estamos, como isto não fecha para obras, tentemos pelo menos fazer o trabalho de casa tão bem feito quanto nos for possível. Tentemos ganhar credibiidade externa ao cumprir aquilo com que nos comprometemos. E, o que não é menos importante, tentemos manter, na nossa cultura política, uma luta tenaz contra o “quanto pior melhor”, que parece apostado em que tudo corra o pior possível, que afeta a generalidade da imprensa económica e estimula o “tremendismo” de certa classe política. Apenas lembraria que, como tivemos mostras muito recentes, quando as coisas correm mal, correm mal quase sempre para todos.
No que me toca, longe de ser hoje tão definitivo como fui face ao meu interlocutor canadiano de 2007, de que lhes falei no início, de que estava em absoluto fora do cenário sairmos do euro, não deixo de pensar que passou entretanto uma década, e que o país resistiu. E o euro também.
Não estamos mais fortes, não temos defesas mais seguras face aos imponderáveis do futuro, mas creio que é tempo de, com alguma regularidade, nos perguntarmos que não será por acaso cá continuamos, um dos mais antigos países do mundo, com quase nove séculos com fronteiras definidas, que atravessou crises existenciais bem piores. Eu, pelo menos, quando coloco esta questão a mim mesmo sinto bastante confiança.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Muito bom ...Grande documento
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